sábado, 27 de agosto de 2011

Teatro Crítica: Contos de Sedução e Machados de Assis

Jornal do BrasilAna Lúcia Vieira de Andrade
 
Curiosamente, estão em cartaz no Rio de Janeiro duas encenações que buscam trazer para os palcos parte do universo narrativo de autores que marcaram rofundamente a literatura de seus países na segunda metade do século 19: Guy de Maupassant e Machado de Assis.
Contos de sedução, espetáculo do grupo TAPA dirigido por Eduardo Tolentino de Araújo, em cartaz na Caixa Cultural (último fim de semana), como o próprio título indica, teatraliza seis contos do conhecido escritor francês que giram em torno do tema da sedução e da (im)possibilidade de realização amorosa entre homem e mulher numa sociedade voltada para as aparências, onde predominam as relações utilitárias. Neste caso, o trabalho de Tolentino, utilizando-se da adaptação de Jonathan Amacker, não se propõe a criar uma cena em que se problematiza a função de narrar. Não se coloca em questão o fato de serem utilizados elementos dramáticos para dar conta de um universo ficcional criado por um sujeito projetado por uma voz. Aliás, a voz do narrador aqui até desaparece, prevalecendo uma construção dramatúrgica mais “antiga”, que privilegia o diálogo, onde as preocupações que aparecem em certo tipo de produção teatral contemporânea não encontram ressonância. A montagem, assim, demonstra priorizar os temas levantados em nível de conteúdo pelo inusitado das tramas e das situações que retrata, ou seja,busca-se, através da relação referencial com a França do final do século 19, um diálogo com a sociedade brasileira dos anos de 2010. Lê-se no programa: “Ao abordar as ambigüidades, traições, a perversão e o tédio dos ricos por um lado e o pragmatismo dos menos favorecidos por outro, a peça constrói um painel ao mesmo tempo saboroso e bem humorado de aspectos da condição humana que pouco mudaram até os dias de hoje”. E o estudo desses “aspectos da condição humana” coloca-se como interesse central da peça, que chega, através das histórias escolhidas, a surpreender o público com reflexões bastante modernas  a respeito, por exemplo, das relações de gênero e da dificuldade dos casais em viver umasexualidade mais plena dentro dos limites do casamento.
No entanto, a opção do adaptador por colocar o próprio Maupassant em cena delirando, supostamente transformando a si mesmo e aos que o rodeiam em seu leito nos personagens dos contos, resulta um pouco cansativa e não chega a ser muito bem sucedida, pois a leveza cômica do tom geral da montagem, ainda que cínica e cheia de tensão, contrasta com o amargor excessivamente pesado escolhido para retratar a história do escritor francês. O desejo de colocar o autor em cena talvez reflita uma tentativa de compensar certo esvaziamento provocado pela decisão de trabalhar com diálogo puro, que acaba por eliminar o pensamento original dos narradores.
Outra consequência que a ausência de narrador gera, nesse caso, é o fato de os diálogos ficarem um tanto carregados, longos, pois têm que dar conta de situar os acontecimentos, como no conto Na alcova.  Em Carícias, também o tom da encenação fica por demais sombrio,alimentado por uma dramaticidade artificializada proposta pela interpretação do casal de atores. A montagem como um todo, no entanto, acaba por despertar o interesse do público.
Machado de Assis, espetáculo que está em cartaz no Solar de Botafogo, em horário alternativo, propõe-se encenar quatro contos do autor brasileiro mais influente do século XIX: “Pai contra mãe”, “O relógio de ouro”, “O espelho” e “Cantiga de esponsais”. A encenação, contudo, têm objetivos menos ambiciosos do que os pretendidos pela montagem de Tolentino, pois trabalha com uma única atriz em cena, Joana Ferry, responsável também pela adaptação, e pretende constituir-se apenas um veículo primordial de comunicação dos textos machadianos, repetidos quase na íntegra. Com um cenário bastante simples (uma cadeira) e uma iluminação que situa muito sutilmente os estados emocionais, a peça depende de maneira exclusiva do trabalho da atriz para criar as imagens e os climas emocionais propostos pelos contos. Tal desafio é superado com razoável êxito pela jovem intérprete, que se divide entre os papeis dos vários personagens e narradores, saindo-se melhor em algumas ocasiões e pior em outras. Contudo, como já foi mencionado, tal sucesso só ocorre dentro dos limites de uma proposta em que a teatralidade é controlada para funcionar como base para o contato com o material narrativo, elemento dominador.
As transições de um conto para o outro (simples entrada e saída de cena) não resultam especialmente criativas. O espetáculo talvez funcione mais para os aficionados do autor e para adolescentes que estão entrando em contato pela primeira vez com o universo de Machado, pois acabaria servindo como uma boa introdução a ele. Para o público intermediário, no entanto, seu efeito deve ser menos positivo, pois o tempo do teatro acontece de maneira distinta daquele da narrativa, que é escrita para ser lida e relida, gerando uma reflexão que não combina exatamente com as necessidades temporais do acontecimento teatral. Este tipo de público pode, porventura, sentir falta de um espaço próprio de observação, que o permita contemplar com a delicadeza conveniente o material literário.

Nenhum comentário:

Postar um comentário