Teatro Crítica: Contos de Sedução e Machados de Assis
Curiosamente, estão em cartaz no Rio de Janeiro duas encenações que buscam trazer para os palcos parte do universo narrativo de autores que marcaram rofundamente a literatura de seus países na segunda metade do século 19: Guy de Maupassant e Machado de Assis.Contos de sedução, espetáculo do grupo TAPA dirigido por Eduardo Tolentino de Araújo, em cartaz na Caixa Cultural (último fim de semana), como o próprio título indica, teatraliza seis contos do conhecido escritor francês que giram em torno do tema da sedução e da (im)possibilidade de realização amorosa entre homem e mulher numa sociedade voltada para as aparências, onde predominam as relações utilitárias. Neste caso, o trabalho de Tolentino, utilizando-se da adaptação de Jonathan Amacker, não se propõe a criar uma cena em que se problematiza a função de narrar. Não se coloca em questão o fato de serem utilizados elementos dramáticos para dar conta de um universo ficcional criado por um sujeito projetado por uma voz. Aliás, a voz do narrador aqui até desaparece, prevalecendo uma construção dramatúrgica mais “antiga”, que privilegia o diálogo, onde as preocupações que aparecem em certo tipo de produção teatral contemporânea não encontram ressonância. A montagem, assim, demonstra priorizar os temas levantados em nível de conteúdo pelo inusitado das tramas e das situações que retrata, ou seja,busca-se, através da relação referencial com a França do final do século 19, um diálogo com a sociedade brasileira dos anos de 2010. Lê-se no programa: “Ao abordar as ambigüidades, traições, a perversão e o tédio dos ricos por um lado e o pragmatismo dos menos favorecidos por outro, a peça constrói um painel ao mesmo tempo saboroso e bem humorado de aspectos da condição humana que pouco mudaram até os dias de hoje”. E o estudo desses “aspectos da condição humana” coloca-se como interesse central da peça, que chega, através das histórias escolhidas, a surpreender o público com reflexões bastante modernas a respeito, por exemplo, das relações de gênero e da dificuldade dos casais em viver umasexualidade mais plena dentro dos limites do casamento.
No entanto, a opção do adaptador por colocar o próprio Maupassant em cena delirando, supostamente transformando a si mesmo e aos que o rodeiam em seu leito nos personagens dos contos, resulta um pouco cansativa e não chega a ser muito bem sucedida, pois a leveza cômica do tom geral da montagem, ainda que cínica e cheia de tensão, contrasta com o amargor excessivamente pesado escolhido para retratar a história do escritor francês. O desejo de colocar o autor em cena talvez reflita uma tentativa de compensar certo esvaziamento provocado pela decisão de trabalhar com diálogo puro, que acaba por eliminar o pensamento original dos narradores.
Outra consequência que a ausência de narrador gera, nesse caso, é o fato de os diálogos ficarem um tanto carregados, longos, pois têm que dar conta de situar os acontecimentos, como no conto Na alcova. Em Carícias, também o tom da encenação fica por demais sombrio,alimentado por uma dramaticidade artificializada proposta pela interpretação do casal de atores. A montagem como um todo, no entanto, acaba por despertar o interesse do público.
Machado de Assis, espetáculo que está em cartaz no Solar de Botafogo, em horário alternativo, propõe-se encenar quatro contos do autor brasileiro mais influente do século XIX: “Pai contra mãe”, “O relógio de ouro”, “O espelho” e “Cantiga de esponsais”. A encenação, contudo, têm objetivos menos ambiciosos do que os pretendidos pela montagem de Tolentino, pois trabalha com uma única atriz em cena, Joana Ferry, responsável também pela adaptação, e pretende constituir-se apenas um veículo primordial de comunicação dos textos machadianos, repetidos quase na íntegra. Com um cenário bastante simples (uma cadeira) e uma iluminação que situa muito sutilmente os estados emocionais, a peça depende de maneira exclusiva do trabalho da atriz para criar as imagens e os climas emocionais propostos pelos contos. Tal desafio é superado com razoável êxito pela jovem intérprete, que se divide entre os papeis dos vários personagens e narradores, saindo-se melhor em algumas ocasiões e pior em outras. Contudo, como já foi mencionado, tal sucesso só ocorre dentro dos limites de uma proposta em que a teatralidade é controlada para funcionar como base para o contato com o material narrativo, elemento dominador.
As transições de um conto para o outro (simples entrada e saída de cena) não resultam especialmente criativas. O espetáculo talvez funcione mais para os aficionados do autor e para adolescentes que estão entrando em contato pela primeira vez com o universo de Machado, pois acabaria servindo como uma boa introdução a ele. Para o público intermediário, no entanto, seu efeito deve ser menos positivo, pois o tempo do teatro acontece de maneira distinta daquele da narrativa, que é escrita para ser lida e relida, gerando uma reflexão que não combina exatamente com as necessidades temporais do acontecimento teatral. Este tipo de público pode, porventura, sentir falta de um espaço próprio de observação, que o permita contemplar com a delicadeza conveniente o material literário.
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