quarta-feira, 7 de setembro de 2011

No documentário 'Diário de uma busca', Flávia Castro aposta na memória para tratar da vida do militante Celso Afonso Castro


André Miranda ( andre.miranda@oglobo.com.brEste endereço de e-mail está protegido contra spambots. Você deve habilitar o JavaScript para visualizá-lo. ) - O Globo
flaviacastro
RIO - Numa viagem ao Chile, a diretora Flávia Castro visita a casa para onde seus pais se mudaram, em 1972, fugidos da ditadura militar. Seu objetivo era procurar histórias sobre Celso Afonso Gay de Castro, seu pai, morto em 1984, aos 41 anos. Os donos se recordam que alugaram a propriedade para brasileiros, mas não lembram detalhes. Até que um deles pergunta: "Ele era uma pessoa importante?" Flávia diz rapidamente, meio por instinto, meio com consciência: "Para mim, sim."

A cena faz parte do documentário "Diário de uma busca", o primeiro longa-metragem de Flávia, que tem pré-estreia para convidados hoje e estreia no Rio em circuito comercial na sexta-feira. O filme é o relato de uma filha atrás da memória do pai, de importância óbvia, que morreu em circunstâncias misteriosas em Porto Alegre, quando ela tinha 19 anos, mas que sobreviveu em suas lembranças. O resultado, porém, ultrapassou o tom pessoal que o motivou: "Diário de uma busca" foi o vencedor, em 2010, dos prêmios de melhor documentário dos festivais do Rio e de Biarritz. Além disso, o filme está há dez semanas em cartaz em Paris e já foi exibido em onze festivais no Brasil e no mundo.
- Eu sempre escrevi, gosto de escrever. Passei a vida inteira escrevendo diários, contando esta história da minha família - conta a diretora. - Então, certa vez, eu vi o "No sex last night", da Sophie Calle, e me dei conta de que era possível fazer um filme com situações pessoais. O que diferencia meu documentário é um ponto de vista que ainda não foi utilizado no cinema brasileiro, o dos filhos dos militantes.
Os pais de Flávia - a mãe, viva e bastante presente no documentário, é Sandra Macedo - se casaram um mês após o golpe militar de 1964. Os dois eram membros de partidos comunistas de Porto Alegre e participavam de reuniões contra o regime militar. Anos depois, Celso foi preso pelo Dops e torturado. Para evitar novas prisões, então, deixou os filhos - Flávia tem um irmão mais novo, João Paulo Castro, o Joca - com seus tios e partiu junto com Sandra para o Chile, seguindo os passos de centenas de refugiados brasileiros. As crianças viajaram depois.
Também como muitos refugiados, a família teve que deixar o Chile após o golpe contra o presidente Salvador Allende, em 1973, e foi para o exílio na França. Celso e Sandra terminaram se separando, e ele acabou na Venezuela, onde se casou de novo e teve uma filha, Maria, que conviveu com o pai apenas até os 2 anos e meio de idade. Com a anistia do governo brasileiro, em 1979, todos retornaram ao Brasil, sendo que Celso já estava novamente divorciado.
O fato marcante para a história de Flávia, e que certamente foi peça fundamental para sua motivação em realizar seu documentário, ocorreu em Porto Alegre, em 4 de outubro de 1984. Acompanhado de um amigo, Celso, que trabalhava parte como jornalista e parte como assessor parlamentar, entrou no apartamento de um cidadão alemão, ex-cônsul do Paraguai. Celso e o amigo morreram, e o alemão foi baleado. A versão das autoridades foi de que os dois invadiram o apartamento para assaltar, acabaram cercados pela polícia e se suicidaram. O caso foi noticiado nos jornais e veio a se descobrir que o alemão havia sido um agente nazista, inclusive com fardas e documentos guardados em casa.
- Meu filme é muito mais sobre a vida do que sobre a morte. Ele refaz uma trajetória de vida, é um filme sobre uma família, uma experiência, uma infância - diz Flávia. - É curioso que algumas pessoas, depois de assistirem ao documentário, me procuram para contar suas perdas. São histórias que não têm muito a ver com a minha, mas elas sentem uma proximidade.
O projeto de "Diário de uma busca" começou a sair do papel em 2002. O primeiro interlocutor de Flávia foi seu irmão Joca, que surge em vários momentos do documentário debatendo com a diretora as motivações de se contar a história e também auxiliando-a na busca pela memória paterna. Num desses, ele fala: "O filme é teu, a história é tua, a linguagem é tua, o olhar é todo teu. Sinto que você quer que eu compartilhe contigo essa história, mas essa não é a história que eu faria."
- Em todos os debates sobre o filme, a primeira pergunta que as pessoas fazem é se o Joca gostou - brinca Flávia. - É porque ele marca muito uma posição. Ele é antropólogo, tem uma relação diferente com esta história. Mas pensamos o projeto juntos, conversamos bastante durante todo o tempo. O resto da família também foi acompanhando e se acostumando aos poucos com a ideia. Minha avó paterna e minha mãe primeiro se perguntavam qual era a razão para se fazer o filme. Mas, depois, eu me lembro que perguntei para minha mãe se ela gostaria de assistir a um corte maior do documentário, antes que ele ficasse pronto. Ela disse que não. Disse que o filme era meu e só veria depois.
"Diário de uma busca" se alterna entre viagens da família para recordar o passado, leituras das cartas deixadas pelo pai e entrevistas com personagens da época, muitos deles questionando as alegações para a morte. Flavia entrevista policiais, jornalistas, legistas, amigos e parentes. Descobre situações misteriosas em torno do caso, como o sumiço de documentos e ordens para que os jornais parassem de cobrir o crime. E, de certa forma, ela também entrevista a si mesma buscando a imagem do pai que ficou no passado.
- Não é que eu não me conformei com sua morte, mas eu queria ir atrás da verdade - diz ela. - Escrevi o roteiro antes. Eu sabia que queria um documentário com planos fixos e narração em off sobre a infância, e planos em movimento para a leitura das cartas. Eu só não sabia o que iria encontrar na investigação sobre sua morte. Meu desejo era ter uma estrutura dramatúrgica que se aproximasse de um filme de ficção.
Talvez por inspiração, enquanto trabalhava em seu documentário Flávia escreveu outro roteiro, desta vez de uma ficção propriamente dita. "A memória é um músculo da imaginação", ainda em pré-produção, será sobre um adolescente refletindo acerca da vida. Não será autobiográfico, mas certamente trará o grande tema que persegue Flávia. Será, sim, uma nova busca pela memória.

Leia mais sobre esse assunto em http://oglobo.globo.com/cultura/mat/2011/08/22/no-documentario-diario-de-uma-busca-flavia-castro-aposta-na-memoria-para-tratar-da-vida-do-militante-celso-afonso-castro-925179236.asp#ixzz1Vs97R2rI

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