quarta-feira, 7 de setembro de 2011

Livro conta como Aracy de Carvalho, a segunda mulher de Guimarães Rosa, salvou a vida de judeus perseguidos pelos nazistas
A brasileira recebeu a condecoração Justa Entre as ações

Walter Sebastião - EM Cultura

Divulgação
Pela primeira vez, um livro joga luz sobre personalidade que permaneceu na sombra: Aracy de Carvalho Moebius Tess (1908-2010), a segunda mulher do escritor Guimarães Rosa (1908-1967), que lhe dedicou o romance Grande sertão: veredas. Chefe do setor de passaportes do consulado do Brasil na cidade alemã de Hamburgo, ela viabilizou a vinda de refugiados para o Brasil durante a 2ª Guerra Mundial. Justa – Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: trocando a Alemanha nazista pelo Brasil, escrito pela historiadora Mônica Raisa Schpun, conta a história de 14 pessoas que vieram para o país. Sem a ação dessa brasileira, nenhum dos personagens escaparia da morte.

Leia um trecho do livro!

Mônica explica que não se trata de biografia, porque não era interesse dela se dedicar ao gênero. Além disso, observa, não há documentos suficientes que permitam esse tipo de abordagem. “É livro de história”, define. “Fiquei encantada com a amizade entre Aracy e Maria Margarethe Bertel Levy”, revela. As duas se conheceram no balcão onde se concediam vistos de entrada no Brasil. Trocaram confidências e presentes, mantiveram o relacionamento até a morte. Ambas faleceram em 2010, aos 102 anos. “São duas mulheres com a mesma idade e perfis diferentes vivendo um momento dramático”, afirma a autora.

Aracy de Carvalho era moça de classe média brasileira, filha de imigrantes. Separou-se do primeiro marido e se mudou para a Alemanha, em 1934, como filho pequeno. Precisava de trabalho, aceitou o emprego no consulado brasileiro em Hamburgo. Quatro anos depois, conheceu o mineiro João Guimarães Rosa, cônsul adjunto. Devido à perseguição aos judeus, aquela funcionária pública viu o setor em que trabalhava ganhar dimensão imprevista.

Rica, cosmopolita e integrante da elite de Hamburgo, Margarethe Bertel falava sete línguas. De repente, considerada membro de “raça inferior” pelos nazistas, viu as portas se fecharem, foi obrigada a deixar a Alemanha com o marido. Mônica Schpun fez três longas entrevistas com ela. Graças a Aracy, Margarethe chegou ao Brasil em 1938. Deixou seu país na manhã que antecedeu à Noite dos Cristais, em que nazistas incendiaram sinagogas e depredaram casas e lojas pertencentes a judeus. As tropas de Hitler prenderam 30 mil pessoas, enviadas a campos de concentração.

No poder desde 1933, o führer começou a implantar leis raciais a partir de 1934 e a perseguir judeus, além de oposicionistas, católicos e intelectuais. Os semitas foram excluídos do serviço público, espoliados de seus bens e proibidos de frequentar espaços públicos. “Ainda não havia chegado o momento do genocídio. Os nazistas trabalhavam para expulsá-los da Alemanha e tomar seus bens”, lembra Mônica.

Aracy poderia ter se recusado a conceder vistos ou ser indiferente aos pedidos de imigração para o Brasil, lembra a pesquisadora. “Ela poderia enrolar os solicitantes, dificultar e atrasar processos, como é comum em ambientes burocráticos. Mas fez exatamente o contrário: teve boa vontade com todos, empenhou-se em agilizar a documentação, trabalhou duro, muito e com rapidez. Valeu-se de todas as brechas na legislação e até cometeu algumas irregularidades para facilitar a fuga dos perseguidos para o Brasil”, conta. O maior país sul-americano, como boa parte das nações, controlava o ingresso de judeus em seu território. Devido a seu crescimento econômico, era considerado um bom lugar para recomeçar a vida. “Assim, 14 pessoas foram salvas da morte”, lembra Mônica Schpun. Só um deles veio com a família – os outros perderam todos os parentes assassinados.

“É livro de história, mas pode ser lido por todos”, afirma a autora. A proposta dela é contribuir para a percepção mais depurada de nossa trajetória. “Só conhecendo a história temos a possibilidade de um futuro melhor. Sem ela, permanecemos prisioneiros do passado”, acrescenta.

Doutora em história pela Universidade de Paris VII e pesquisadora do Centre de Recherches Sur le Brasil Conteporain da Écola des Hautes Études en Sciences Socialies, Mônica Schpun leciona história das migrações internacionais e é diretora da revista Brésil(s). Já publicou Beleza em jogo – Cultura física e comportamento em São Paulo nos anos 1920. Organizou dois volumes coletivos: Gênero sem fronteiras – oito olhares sobre mulheres e relações de gênero e Masculinidades.

Lançamento

Justa – Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: trocando a Alemanha nazista pelo Brasil (Editora Civilização Brasileira), de Mônica Raisa Schpun. Nesta terça, às 19h30, a autora participa do projeto Sempre um papo, na Sala Juvenal Dias (Avenida Afonso Pena, 1.537, Centro). Informações: (31) 3261-1501.

Saiba mais
Os justos
O nome do livro de Mônica Raisa Schpun se refere à condecoração Justo Entre as Nações, concedida pelo Museu do Holocausto de Jerusalém a não semitas que salvaram judeus do genocídio nazista. Cerca de 22 mil pessoas receberam a honraria, a maioria delas atuou no contexto europeu. Diplomatas são raros entre os condecorados, informa a historiadora Mônica Raisa Schpun, estimando que cerca de 30 receberam o título. Por isso, observa, é expressivo o fato de os dois justos brasileiros – Aracy de Carvalho e o embaixador Luiz Martins de Souza Dantas (1876-1954) – pertencerem aos quadros da diplomacia. Fábio Koifmann contou a vida de Luiz Martins no livro Dantas, quixote nas trevas. “Injustos são tantos que a gente perde a conta. Os justos contamos nos dedos”, afirma Mônica.

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