G Ideias -Literatura fantástica - Uma estranha realidade
Ilustração: Osvalter Urbinati Filho
O período que vai da segunda metade do século 18 às primeiras décadas do século 20 é único em termos civilizatórios: mesmo se considerarmos a existência de um processo histórico constante, é possível afirmar que foi nesse momento que as coisas – o mundo, tal como o concebemos – se configuraram. Foi a era das revoluções, do fortalecimento da burguesia, do despertar da esquerda e da reconfiguração do poder dos reis; do culto à razão e da dúvida escancarada em relação a Deus e à Igreja; da ciência e da tecnologia; da cultura de massa; do choque civilizacional e das modernas diásporas; da vida nas metrópoles, que impôs aos seres humanos uma sociabilidade baseada no pragmatismo, no dinheiro e na frieza em relação ao próximo; foi o tempo, enfim, em que esperanças e angústias conheceram novos limites.
Não é sem motivo, portanto, que muitos dos pensadores que influenciam as atuais visões de mundo – de Marx a Darwin, passando por Smith, Goethe, Nietzsche, Durkheim, Weber e Freud – tenham vivido nesse intervalo de cerca de cento e cinquenta anos. Pois, ao lado deles, de forma muitas vezes marginal, uma infinidade de outros indivíduos se aproximou do estranho novo mundo. Em sua jornada, optaram pela narrativa literária, para produzir algumas das mais interessantes, coloridas e excêntricas leituras da modernidade.
Com suas obras, esses autores fundaram o que hoje conhecemos como “literatura fantástica”, um universo marginal que se configurou nas literaturas gótica, policial, de horror, de fantasia e de ficção científica. Gêneros até hoje considerados “menores” por muita gente, mas que, estranhamente, estão na origem de boa parte dos enredos de livros, filmes, jogos, quadrinhos e até da pesquisa científica que animam o imaginário do mundo no século 21.
Androides e raios
É difícil estabelecer um ponto inicial para uma literatura baseada no fantástico. No passado mais remoto, ela se misturava às teogonias e aos mitos fundadores da civilização. Histórias como as contadas na epopeia suméria de Gilgamesh ou no poema épico hindu Mahabharata são surpreendentemente próximas das sagas dos heróis dos quadrinhos criados por Stan Lee e Allan Moore. Ainda assim, na modernidade ela assumiu um caráter diferente, ao somar elementos arcaicos – antigos medos e sonhos – a novas variáveis, ao mesmo tempo promissoras e assustadoras.
É nesse contexto que vamos encontrar, por exemplo, alguns dos contos de Ernest Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822), prussiano de Königsberg, e que é considerado o precursor do Romantismo e da moderna literatura fantástica. Em O Homem de Areia, de 1816, ele somou um antigo terror do folclore germânico – o personagem Homem de Areia, utilizado por mães para assustar crianças que não queriam dormir – com a atração exercida pela tecnologia, mais exatamente pela possibilidade de criação de androides.
A mesma amarração entre o arcaico e as possibilidades futuras aparece em Frankenstein ou o Prometeu Moderno, obra escrita no mesmo ano por uma jovem inglesa de vinte anos, Mary Shelley (1797-1851). Produzida a partir de uma brincadeira entre a autora e os poetas românticos Percy Shelley (seu marido) e Byron, a obra, um grosso volume publicado pela primeira vez em 1817, desvenda o encantamento humano diante da possibilidade de criar vida a partir do domínio de correntes elétricas, técnicas cirúrgicas e ressuscitação de tecidos. Mais do que isso, porém, questiona, em termos modernos, os limites do poder racional a da ética na ciência. Os mesmos dilemas retornarão em A Ilha do Doutor Moreau, livro publicado oitenta anos mais tarde por outro mestre da literatura fantástica, H. G. Wells (1866-1946).
A metrópole fantástica
A relação entre o fantástico e a ciência ganhou contornos ainda mais sombrios pelas mãos de Edgar Allan Poe (1809-1849), que produziu algumas das melhores histórias fantásticas associadas aos limites da ciência. Em Poe, o ingrediente assustador parece residir na valorização do pragmatismo ou da “frieza” científica, algo que observamos claramente em O Caso do Sr. Valdemar, de 1845. O conto trabalha com um tema muito em voga à época – a possibilidade de “mesmerizar” ou hipnotizar alguém – para se aproximar, com todos os sustos e até certo asco, da experiência da morte.
Poe, porém, foi além em seus trabalhos. Ele é considerado o criador do romance policial, com Os Assassinatos da Rua Morgue (de 1841), O Mistério de Maria Roget (1842) e A Carta Roubada (1844), que apresentaram à literatura o arquétipo do investigador (C. Auguste Dupin) que se baseia no raciocínio para solucionar crimes. Essas histórias somente se tornaram possíveis porque Poe incorporou o valor de um novo cenário, a metrópole, às histórias fantásticas. Poe também investiu em relatos de viagem e aventura, como O Escaravelho de Ouro (de 1843, talvez a melhor história de caça ao tesouro já escrita) e O Relato de Arthur Gordon Pym (1838).
O indescritível
Poucos autores produziram tantos fãs e continuadores da obra quanto Howard Phillip Lovecraft (1890-1937), o misantropo americano que, nas décadas de 1920 e 1930, publicou dezenas de contos de terror e fantasia em revistas populares. Além de criar uma estranha e aterrorizante mitologia – baseada na existência de antigos deuses alienígenas inapreensíveis pela mente humana em seu estado normal –, ele também forjou figuras que se tornaram notáveis no universo da literatura fantástica. Uma delas é “Necronomicon” (ou “Kitab al-Azif”), livro fictício que seria capaz de abrir as portas do universo dos antigos deuses obscuros – e de levar seu leitor à loucura; a outra é a Universidade de Miskatonic, palco de pesquisas que misturavam ciência e necromancia. Lovecraft também foi pioneiro ao produzir um estudo sobre seu próprio tipo de literatura. A obra, intitulada O Horror Sobrenatural na Literatura, traz boas referências para leitores interessados em “gelar o próprio sangue”.
Não é sem motivo, portanto, que muitos dos pensadores que influenciam as atuais visões de mundo – de Marx a Darwin, passando por Smith, Goethe, Nietzsche, Durkheim, Weber e Freud – tenham vivido nesse intervalo de cerca de cento e cinquenta anos. Pois, ao lado deles, de forma muitas vezes marginal, uma infinidade de outros indivíduos se aproximou do estranho novo mundo. Em sua jornada, optaram pela narrativa literária, para produzir algumas das mais interessantes, coloridas e excêntricas leituras da modernidade.
Um cortejo fantástico
A relação de escritores fantásticos abrange dezenas de literatos de vários países – França, Inglaterra, Itália, Alemanha, Espanha, Polônia, Rússia, Estados Unidos e mesmo do Brasil –, muitos dos quais tornados célebres por outras obras. Voltaire, Goethe, Swift, Merimée, Maupassant, Melville, Machado de Assis e Jo-seph Conrad (ver entrevista) são apenas alguns dos autores “canônicos” que, em certos momentos de sua jornada, ergueram a pena para contar histórias pautadas no estranho.Terra da liberdade absoluta
“O romance é a terra da liberdade absoluta e, nele, a mentira é crucial.” A frase é do escritor e filósofo francês Paul Tabet, dita em uma entrevista à escritora e psicanalista Betty Milan (Folha de S. Paulo, 24/8/2003). Pode-se generalizar e afirmar que a literatura (ou toda a arte) deve ser a terra da liberdade absoluta. Não precisa respeitar regras, mitos, religiões ou crenças sociais vigentes. Nem mesmo as do escritor. Cria o seu próprio mundo.Das trevas ao irreal
Joseph Conrad (nascido na Polônia em 1857 como Józef Korzeniowski) é um dos principais representantes da moderna literatura em língua inglesa. Uma de suas obras, O Coração das Trevas, é considerada um dos mais agudos libelos contra o colonialismo europeu. O livro, porém, também pode ser lido a partir da perspectiva do fantástico. Marcelo Paiva de Souza (doutor em Ciência da Literatura pela Universidade Jaguelônica, de Cracóvia, e professor do curso de Letras-Polonês da UFPR) fala sobre essa possibilidade literária – e sobre o valor crítico da literatura fantástica.Androides e raios
É difícil estabelecer um ponto inicial para uma literatura baseada no fantástico. No passado mais remoto, ela se misturava às teogonias e aos mitos fundadores da civilização. Histórias como as contadas na epopeia suméria de Gilgamesh ou no poema épico hindu Mahabharata são surpreendentemente próximas das sagas dos heróis dos quadrinhos criados por Stan Lee e Allan Moore. Ainda assim, na modernidade ela assumiu um caráter diferente, ao somar elementos arcaicos – antigos medos e sonhos – a novas variáveis, ao mesmo tempo promissoras e assustadoras.
É nesse contexto que vamos encontrar, por exemplo, alguns dos contos de Ernest Theodor Amadeus Hoffmann (1776-1822), prussiano de Königsberg, e que é considerado o precursor do Romantismo e da moderna literatura fantástica. Em O Homem de Areia, de 1816, ele somou um antigo terror do folclore germânico – o personagem Homem de Areia, utilizado por mães para assustar crianças que não queriam dormir – com a atração exercida pela tecnologia, mais exatamente pela possibilidade de criação de androides.
A mesma amarração entre o arcaico e as possibilidades futuras aparece em Frankenstein ou o Prometeu Moderno, obra escrita no mesmo ano por uma jovem inglesa de vinte anos, Mary Shelley (1797-1851). Produzida a partir de uma brincadeira entre a autora e os poetas românticos Percy Shelley (seu marido) e Byron, a obra, um grosso volume publicado pela primeira vez em 1817, desvenda o encantamento humano diante da possibilidade de criar vida a partir do domínio de correntes elétricas, técnicas cirúrgicas e ressuscitação de tecidos. Mais do que isso, porém, questiona, em termos modernos, os limites do poder racional a da ética na ciência. Os mesmos dilemas retornarão em A Ilha do Doutor Moreau, livro publicado oitenta anos mais tarde por outro mestre da literatura fantástica, H. G. Wells (1866-1946).
A metrópole fantástica
A relação entre o fantástico e a ciência ganhou contornos ainda mais sombrios pelas mãos de Edgar Allan Poe (1809-1849), que produziu algumas das melhores histórias fantásticas associadas aos limites da ciência. Em Poe, o ingrediente assustador parece residir na valorização do pragmatismo ou da “frieza” científica, algo que observamos claramente em O Caso do Sr. Valdemar, de 1845. O conto trabalha com um tema muito em voga à época – a possibilidade de “mesmerizar” ou hipnotizar alguém – para se aproximar, com todos os sustos e até certo asco, da experiência da morte.
Poe, porém, foi além em seus trabalhos. Ele é considerado o criador do romance policial, com Os Assassinatos da Rua Morgue (de 1841), O Mistério de Maria Roget (1842) e A Carta Roubada (1844), que apresentaram à literatura o arquétipo do investigador (C. Auguste Dupin) que se baseia no raciocínio para solucionar crimes. Essas histórias somente se tornaram possíveis porque Poe incorporou o valor de um novo cenário, a metrópole, às histórias fantásticas. Poe também investiu em relatos de viagem e aventura, como O Escaravelho de Ouro (de 1843, talvez a melhor história de caça ao tesouro já escrita) e O Relato de Arthur Gordon Pym (1838).
O indescritível
Poucos autores produziram tantos fãs e continuadores da obra quanto Howard Phillip Lovecraft (1890-1937), o misantropo americano que, nas décadas de 1920 e 1930, publicou dezenas de contos de terror e fantasia em revistas populares. Além de criar uma estranha e aterrorizante mitologia – baseada na existência de antigos deuses alienígenas inapreensíveis pela mente humana em seu estado normal –, ele também forjou figuras que se tornaram notáveis no universo da literatura fantástica. Uma delas é “Necronomicon” (ou “Kitab al-Azif”), livro fictício que seria capaz de abrir as portas do universo dos antigos deuses obscuros – e de levar seu leitor à loucura; a outra é a Universidade de Miskatonic, palco de pesquisas que misturavam ciência e necromancia. Lovecraft também foi pioneiro ao produzir um estudo sobre seu próprio tipo de literatura. A obra, intitulada O Horror Sobrenatural na Literatura, traz boas referências para leitores interessados em “gelar o próprio sangue”.
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